
Jardins da Mente
Projeto para criação de jardins e hortos medicinais comunitários
Publicado em 07 de setembro de 2025
"Há amor da natureza em cada um de nós, um amor materno ancestral sempre presente, ainda que não reconhecido e encoberto por preocupações e deveres mundanos" - essa frase de John Muir nos lembra de algo que deveria ser evidente a todo momento: somos parte da natureza, coexistimos desde antes de nos entendermos como espécie, dependemos dela, e só muito recentemente nos emancipamos, com certa pretensão de superioridade.
Em 2019, um estudo publicado pela Nature mostrou que pessoas que passam pelo menos 120 minutos por semana em contato com a natureza relatam ter melhor saúde e bem-estar. Seja nas palavras poéticas de Muir, ou no tom quantificante dos pesquisadores, temos que ser lembrados do óbvio: ignoramos nossa necessidade de contato com a natureza frente a rotinas cada vez mais alienantes.

Senti essa alienação na pele no início da vida adulta. Nasci e fui criado no interior do Rio Grande do Sul, onde visitava praticamente todos os fins de semana algum rio, cachoeira, ou parente no campo. Logo, o contato com a natureza era garantido como parte do existir, e só ao sair de casa para estudar na capital perdi essa proximidade. E essa perda deixou um grande vazio em minha nova vida urbana.

Se a simples proximidade com a natureza é benéfica, o potencial das plantas medicinais é ainda maior. Eu já ouvia sobre o poder de cura das plantas desde a infância, pelas palavras de minha avó. Ela colhia as plantas, preparava garrafadas, e distribuia na sua comunidade no interior de Marau. A nonna Teresinha foi meu exemplo da importância desses saberes, que eram o único recurso em tempos anteriores à chegada da medicina moderna, e ainda são usados em áreas remotas.
O conhecimento tradicional foi gradualmente substituído por tratamentos baseados em evidências científicas, o que trouxe benefícios inestimáveis. Mas o que é perdido ao esquecermos o conhecimento tradicional também é valioso, e senti a necessidade de resgatar tudo isso.

Preparando o terreno
Durante a faculdade me interessei pelo uso de plantas em doenças resistentes e refratárias, ou seja, aquelas que não respondem aos tratamentos convencionais. É o caso de muitos pacientes com transtornos psiquiátricos que tem pouco ou nenhum benefício com os tratamentos atuais, ou que tem efeitos indesejáveis com a medicação. Assim, com muita curiosidade e vontade de experienciar pessoalmente um possível efeito terapêutico, decidi estudar a Ayahuasca, que abordo em detalhes nesse link.
Comecei a catalogar espécies, e logo descobri a Etnobotânica, uma área do conhecimento que estuda o uso das plantas por humanos em diferentes sociedades, geralmente com ênfase no uso medicinal e ritualístico.
Eu já havia experimentado algumas plantas com objetivo de melhorar disposição, memória e concentração (além do nosso querido café). As plantas ou substâncias que tem esse efeito são conhecidas como Nootrópicos, dois exemplos são a Raíz de Ouro (Rhodiola rosea), e o Brahmi (Bacopa monnieri), que já eram vendidas pela indústria farmacêutica, e prescritas por psiquiatras e neurologistas visando uma melhora ou preservação das funções cognitivas em condições como TDAH e Doença de Alzheimer.
Na minha experiência com a Raíz de Ouro percebi um benefício modesto, inferior à medicação convencional (como a ritalina). Mesmo assim me parecia vantajoso, por não ter os mesmos efeitos indesejáveis da medicação controlada. Mas logo o fitoterápico se tornou uma despesa dispensável para um estudante universitário, e finalmente decidi que a solução seria cultivar eu mesmo meu Jardim Etnobotânico.

Das muitas plantas que cultivei desde então, Rhodiola rosea e Bacopa monnieri estão entre as que não se adaptaram ao clima do sul (ou aos meus cuidados), mas já havia descoberto muitas outras. Com o tempo, o processo de obter sementes e mudas, tentar germiná-las e vê-las crescer foi tão envolvente e gratificante que descobri na jardinagem uma atividade terapêutica, e assim resgatei o contato perdido com a natureza, mesmo dentro de apartamentos.
Com isso, a expectativa inicial de experimentar os efeitos da plantas se tornou algo secundário, até dispensável. A melhor parte passou a ser o processo de cuidado, observando as diferentes necessidades das espécies enquanto se adaptam ao clima local. E se o cultivo for bem-sucedido, ele culmina em uma pequena farmácia viva, daí a ideia do projeto Jardins da Mente, em que, após dominar esses conhecimentos, eu poderia aplicá-los para ajudar meus pacientes.
Então foquei em cultivar plantas medicinais que não eram encontradas em lojas de produtos naturais, ou que tinham importância ritual, como a ayahuasca. Foi o caso do cacto San Pedro (Trichocereus pachanoi), com uso medicinal pelos povos andinos, e a trepadeira Ololiuqui (Ipomea corymbosa), usada em civilizações que habitavam a região do México atual. Ainda não há estudos suficientes para indicar essas plantas em qualquer tratamento, mas seu uso milenar sugere um potencial terapêutico. E enquanto expandia meu jardim, pensava em formas de levar os Jardins da Mente para minha prática clínica.
Primeiras experiências no SUS
A primeira ideia de criar uma horta medicinal para a comunidade ocorreu quando trabalhei no CAPS de Marau em 2022. Há muito tempo o trabalho ao ar-livre é proposto como modalidade terapêutica pela Terapia Ocupacional, com méritos e deméritos. Quando cheguei já existia no CAPS um projeto anterior aprovado pela secretaria de saúde e iniciado pela equipe, com espaço e verba destinados para isso, o que permitiu a aquisição de material para uma estufa. Infelizmente o projeto nunca saiu do lugar, a lona da estufa foi emprestada para algum rodeio e nunca voltou, e a estrutura metálica estava sendo consumida pelo abandono. Essa situação é compreensível considerando que a equipe do CAPS estava reduzida e sofria com alta rotatividade de profissionais. Mesmo com minha chegada não fomos capazes de seguir com o projeto, mas não desisti da ideia.
É fácil perceber na maioria das Unidades Básicas de Saúde uma grande demanda por medicamentos sedativos para tratamento da insônia. Com frequência esses medicamentos são prescritos sem uma avaliação adequada, e são usados por longos períodos sem acompanhamento, apenas com renovação de receitas. A pessoa que sofre com insônia encontra alento na medicação, e com o uso crônico se torna impensável interromper o medicamento e voltar a passar noites em claro.
Em muitos casos a medicação é bem indicada, mas igualmente é preciso medir riscos e benefícios para manter o tratamento. Quando for necessária interrupção do medicamento é preciso fazer um desmame gradual, com medidas de higiene do sono. Menciono essa situação aqui por ser a motivação de criar os primeiros hortos medicinais em unidades de saúde onde trabalhei. Abordo a insônia com mais detalhes aqui, e estratégias para interrupção de medicamentos aqui.
Percebendo a possibilidade de oferecer uma alternativa aos medicamentos sedativos, iniciei um esforço mais concreto para uso de plantas medicinais com um projeto de intervenção no meu Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Medicina de Família e Comunidade da UFMG.
Ao longo de aproximadamente 2 anos reuni uma lista de plantas medicinais usadas pelos próprios pacientes, geralmente os anciãos da comunidade. O horto contaria com algumas dessas plantas, e outras com efeito sedativo, e junto da equipe divulgaríamos o acesso ao horto, coleta e distribuição de mudas, e informações para o uso seguro das plantas.
A intervenção contou com ajuda de alunos da Residência Multiprofissional em Saúde da UFSC para construir um horto medicinal na UBS Edeval Caetano. E membros da comunidade ajudaram a criar outro horto medicinal na UBS Ângelo Manoel Borges.

Atualmente sigo reunindo plantas com potencial terapêutico em Marau, onde era a horta da nonna Teresinha. O plano é expandir o projeto Jardins da Mente sistematizando a implantação dos hortos medicinais com plantas seguras para uso espontâneo pelas comunidades, e que o horto seja cultivado pelos próprios moradores, reunindo os benefícios da plantas medicinais e do contato com a Natureza.
